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Lucas Benício

Com_versando – IV Encontro Virtual do LER

No dia 28 de janeiro de 2021 o projeto LER – Literatura, Engenharia e Reflexões deu segmento à iniciativa Com_versando, ação na qual é promovida uma roda de conversa de maneira bastante dinâmica com convidados de diversos âmbitos relacionados com a cultura, literatura e arte. Na ocasião foi realizado o quarto encontro virtual do projeto, que contou com a presença dos convidados Íris Cavalcante, especialista em escrita literária e escritora, além de Alan Mendonça, escritor, dramaturgo e compositor, sob a mediação do professor idealizador e realizador do projeto LER, Luís Gonzaga do DIATEC – UFC.



Como de costume o encontro teve inicio com a fala do professor Luís Gonzaga declarando os objetivos e falando brevemente sobre o projeto LER bem como da iniciativa Com_versando, além de ressaltar a poesia como temática chave do presente encontro.


“Hoje nós vamos falar sobre poesia, liberdade poética e tudo que a gente possa imaginar aqui [...] Coloco aqui, poesia para quê? Será que a poesia ainda serve para algo?”.

Luís Gonzaga


A indagação critica feita pelo professor mostrou um pouco de como deveria se estender o diálogo, mostrando a importância da poesia na sociedade contemporânea. Ele se estendeu traçando uma relação entre música e poesia, onde o apego às letras de musica como as do irreverente Cazuza lhe conduziram posteriormente à poesia, sendo apresentado aos textos de Pablo Neruda, Francisco Carvalho, Bukowski e tantos outros.


Em seguida foi dada a palavra à escritora cearense Íris Cavalcante, finalista do Prêmio Jabuti em 2018, que iniciou falando sobre ciclos, onde ao fim de um ciclo buscava seguir a “voz literária” para embarcar em algo novo, período de autoconhecimento que chamou de “crise da autora”, após este processo evolutivo a convidada conta que descobriu sua “voz literária” e já sabia “por que queria dizer” e “para quem queria dizer”, decisões que conduzem um escritor.

A escritora frisou a arte no estado do Ceará, ressaltando que ela não alcança tanto quanto pode, aproveitando para fazer um convite para que os autores cearenses sejam “lidos” cada vez mais, visto que o estado é bastante rico em cultura de modo geral, desde as periferias até os grandes centros urbanos. Íris falou da pessoalidade da questão “poesia para quê?” que parte das experiências e da imersão do individuo em meio a este âmbito, criticando a expectativa da sociedade em detrimento a poesia.


“O poeta não tem que ser somente lírico, eu acho que se espera muito mais da poesia, pelo menos para mim ela é uma desconstrução, ela é a minha voz, é em um momento que eu não posso falar de outra forma, ela é a minha salvação, ela é a minha resistência, ela é a minha revolta mesmo né?! É a denuncia, é o protesto, é o desassossego”.

Íris Cavalcante


A convidada ressaltou a poesia que relata e protesta, declarando ser o seu viés preferido, evidenciando a necessidade de expor as revoltas e angustias em meio à contemporaneidade caótica em que estamos inseridos, inclusive mencionando Hilda Hilst uma importante voz feminina da nossa poesia. Através de uma poesia inédita intitulada “Sonâmbula” ela mostra de que forma faz ecoar seu “grito" de revolta através de metáforas e simbolismo. Por fim, a escritora leu um trecho de seu livro “Por quem elas se curvam” que será lançado neste ano de 2021, deixando um gostinho de “quero mais” no público que acompanhava o encontro.



Novamente o mediador Luís Gonzaga entrou em ação, desta vez falando um pouco sobre suas vivências em relação à poesia, momento em que mencionou o primeiro livro que teve oportunidade de ler, sendo “Memórias do espantalho” do poeta cearense Francisco Carvalho conhecido como “o poeta recluso”, destacando sua forma mítica e metafórica de escrever a respeito de temáticas intrigantes como a condição humana. O professor Luís Gonzaga leu então o poema anatomia do nada, o qual lhe chamou atenção pelo estilo, posteriormente leu um texto de sua autoria que relatava o ocorrido de ter achado o livro “Sonata dos punhais”, também de Francisco Carvalho, em uma viagem a Porto Alegre, caso em que o livro encontrou o leitor.

A palavra foi então passada ao convidado Alan Mendonça que iniciou sua fala elogiando o projeto e sua perspectiva. Alan Mendonça declarou que gostaria de falar de poesia com poesia (nada mais justo!), desta forma teceu seus comentários a partir de alguns textos selecionados. O poeta Manoel de Barros foi quem primeiro ganhou menção através do texto “O menino que carregava agua na peneira”.



O menino que carregava água na peneira


Tenho um livro sobre águas e meninos. Gostei mais de um menino que carregava água na peneira. A mãe disse que carregar água na peneira era o mesmo que roubar um vento e sair correndo com ele para mostrar aos irmãos. A mãe disse que era o mesmo que catar espinhos na água. O mesmo que criar peixes no bolso. O menino era ligado em despropósitos. Quis montar os alicerces de uma casa sobre orvalhos. A mãe reparou que o menino gostava mais do vazio, do que do cheio. Falava que vazios são maiores e até infinitos. Com o tempo aquele menino que era cismado e esquisito, porque gostava de carregar água na peneira. Com o tempo descobriu que escrever seria o mesmo que carregar água na peneira. No escrever o menino viu que era capaz de ser noviça, monge ou mendigo ao mesmo tempo. O menino aprendeu a usar as palavras. Viu que podia fazer peraltagens com as palavras. E começou a fazer peraltagens. Foi capaz de modificar a tarde botando uma chuva nela. O menino fazia prodígios. Até fez uma pedra dar flor. A mãe reparava o menino com ternura. A mãe falou: Meu filho você vai ser poeta! Você vai carregar água na peneira a vida toda. Você vai encher os vazios com as suas peraltagens, e algumas pessoas vão te amar por seus despropósitos!


Manoel de Barros


Posteriormente o convidado contou que após assistir o documentário “Só dez por cento é mentira” sobre Manoel de Barros, sentiu vontade de responder assim como ele o porquê de ser poeta, resposta que veio na forma do poema “Motivo” contido em seu livro “O silêncio possível”.



Motivo

Porque o que posso ser nesse mundo é poeta porque traduzo em palavras toda a minha verdade que invento porque, quando menino eu olhei no olho da rua e vi uma estrela numa poça de lama porque eu mergulhei na poça e apanhei por isso porque havia um beco e um curral e eu vi uma borboleta pousada serelepe num estrume de vaca porque minha vó tinha uma sacola de palha cheia de bolachas porque um dia uma mulher me beijou a boca numa noite aperreada porque eu tive um amor pra sempre que se foi no nunca porque o tempo passa e eu desacompanho

Alan Mendonça


“Costumo falar que eu sou poeta porque não posso não ser... Não é escolha, é um exercício de vida que como eu digo nesse poema, que me leva inevitavelmente pra poesia. Eu sou poeta por isso, por que vivi a vida de um jeito que nos atravessa e nos leva pra esse lugar”.

Alan Mendonça


Alan Mendonça continuou falando sobre inspiração, o “onde nasce a palavra” que dá conteúdo e misticismo ao poeta, que serve para sabermos quem somos, deixando claro o papel da poesia também no autoconhecimento do individuo. “O cinema dos fósseis” foi outro de seus livros que ganhou vez em sua narrativa metalinguística do “falar de poesia com poesia”, em uma nova perspectiva o autor falou de outro beneficio do gênero ao dizer que a poesia provoca encontros. Carlos Drummond de Andrade também ganhou menção através de “A flor e a náusea” evidenciando a poesia concreta e objetiva. Algumas outras obras foram mencionadas como seu primeiro livro “Varandas”, além de uma letra de canção composta pelo próprio Alan Mendonça para uma peça, canção que teve um trecho declamado pelo convidado no encontro. A sensação pertinente foi de que cada trecho serviu para responder a necessidade de poesia que reside no ser humano, poesia que critica e conduz à realidade e que ao mesmo tempo alimenta e trás um sopro de fantasia.


Trecho de A flor e a náusea


Preso à minha classe e a algumas roupas, vou de branco pela rua cinzenta. Melancolias, mercadorias espreitam-me. Devo seguir até o enjoo? Posso, sem armas, revoltar-me?

Olhos sujos no relógio da torre: Não, o tempo não chegou de completa justiça. O tempo é ainda de fezes, maus poemas, alucinações e espera. O tempo pobre, o poeta pobre fundem-se no mesmo impasse.


Carlos Drummond de Andrade


Caminhando para o ultimo momento do encontro o professor Luís Gonzaga tornou a falar mencionando Wisława Szymborska, escritora polonesa com Prêmio Nobel no âmbito da literatura. O texto “Alguns gostam de poesia” foi lido e sua mensagem colocada em pauta na discussão. Uma observação pertinente foi a da necessidade da poesia em provocar espanto, como num trecho de poema que lhe captura. O mediador citou ainda o livro “Poesia para quê?” de Carlos Felipe Moisés, com a indagação que culminou no desenvolvimento do rico debate, ademais trazendo o viés de que a poesia nos faz enxergar as coisas de novas maneiras a medida que nos toca. O professor Luis Gonzaga não escapou de mostrar suas criações, ao ser solicitado também mostrou um pouco de seus poemas, declamando seus textos autorais (você pode encontrar alguns na sessão reflexão em nosso blog). Por fim os convidados teceram suas considerações finais elogiando a iniciativa e firmando suas visões com mais poesia.


“Ler e escrever é uma via de mão dupla, a gente lê e ai vem a vontade de escrever e tudo, de colocar isso pra fora, as vezes pode ser um conto, uma crônica, um poema, ai depende do que vem à tona”.


Luís Gonzaga


Distopia


Meus pés tocam a superfície fria do lago.

Caminho sobre as águas.

Lágrimas escorrem pelas paredes do meu quarto.

Cristais de sal se acumulam pelos cantos da sala.

Da janela vejo cristo aprisionado num grande templo.

Os homens constroem suas fortalezas porque não querem enfrentar seus medos.

Levanto-me e decido que é hora de partir.

Quero beijar o rosto da mulher que não conheço ainda.

Ela me espera ansiosa nos versos de um poema de Pablo Neruda.

Num país distante, quem sabe?

Onde nosso amor voe livre como um pássaro.

As pessoas estão doentes, não conseguem ver que tudo isso é uma grande ilusão.

Não há comida, o prato está vazio, o copo está vazio, meu corpo se esvai.

Minha alma vaga pela noite à procura de alguém para conversar.

Só encontro imagens de pessoas projetadas numa tela.

Elas estão aprisionadas em suas fortalezas de cristal líquido, sozinhas.

Os sentimentos humanos se desfazem em nuvem.

Um vírus mortal deletou as lembranças de minha infância.

Procuro uma maneira de acessá-las.

Encontro um álbum velho de fotografias.

Vejo pessoas, paisagens, encontros, desencontros.

Um brinde a tristeza!

Sou um sobrevivente num planeta sem vida.


Luís Gonzaga


Em suma, o IV Encontro Virtual do LER foi um sucesso, uma conversa dinâmica e instigante sobre poesia, algo tão simples e ao mesmo tempo complexo, com uma interpretação relativa para cada individuo. O encontro completo encontra-se em nosso canal no youtube, vale a pena assistir para ter a completa imersão nesse dialogo prazeroso.



Livros mencionados


Vento do 8º Andar – Iris Cavalcante

Por quem se curvam os homens – Iris Cavalcante

Reunião 10 livros de poesia – Carlos Drummond

Memorias do espantalho – Francisco Carvalho

Sonata dos punhais – Francisco Carvalho

O silêncio possível – Alan Mendonça

O cinema dos fósseis – Alan Mendonça

A desmedula da seta – Alan Mendonça

Poemas para se assobiar de longe – Ferreira Lima

Cinco inscrições da mortalidade – Alan Mendonça, Bruno Paulino, Dércio Brauna, Mailson Furtado e Renato Pessoa

Varandas – Alan Mendonça

Poesia para quê? – Carlos Felipe Moisés

Alguns gostam de poesia: antologia - Czeslaw Mitosz, Sérgio das Neves e Wisława Szymborska


instagram: @ler.ufc

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