100 Anos de Clarice Lispector - Sempre é hora da estrela
VIDA PESSOAL DA AUTORA
Chaya Pinkhasovna Lispector nasceu em Tchetchelnik, na Ucrânia, no dia 10 de dezembro de 1920. A mais jovem de três irmãs, recebeu esse nome, cujo significado é "vida". Dois anos após o seu nascimento, no ápice da guerra civil russa, com os judeus sofrendo uma grande perseguição, sua família emigra para o Brasil. Desembarcaram inicialmente em Maceió - AL, mas logo depois foram morar em Recife - PE. Ao chegar ao Brasil, a família adaptou seus nomes ao português, e foi assim que Haia se tornou Clarice. Aos oito anos, Clarice perdeu a mãe que sofria de paralisia. Nessa época, já estudando em um colégio Hebreu Iídiche Brasileiro e dominando alguns idiomas, Clarice apostou na carreira de escritora. Foi quando escreveu sua primeira peça de teatro, Pobre Menina Rica, além de ter tentado publicar alguns textos na imprensa de Recife, embora sem muito sucesso. Em 1935, já com quatorze anos, Clarice, suas irmãs e seu pai foram morar no Rio de Janeiro.
A autora estudou Direito na instituição que hoje é a UFRJ. Em 1940, com dezenove anos, demonstra desinteresse pelo Direito, ao passo que se dedica mais à Literatura, publicando seu primeiro conto conhecido, Triunfo, no qual narra as reflexões de uma mulher abandonada por seu companheiro. Deslocada com o trabalho de escritório, buscou seguir carreira no jornalismo. Foi durante a faculdade de Direito que Clarice conheceu Maury Gurgel Valente, com quem se casou, no ano de 1943, e começou uma vida itinerante, devido ao trabalho de diplomata do marido.
Não demorou muito para que Clarice fosse trabalhar em diversas revistas, publicando seus contos e também sendo repórter em alguns periódicos cariocas. Toda essa experiência foi essencial na construção do desejo de publicar o primeiro romance, que atestou seu talento como escritora e construiu uma carreira que lhe consagrou como uma das maiores escritoras do Brasil.
Casada com o diplomata Maury Gurgel Valente entre 1943 e 1959, com quem teve dois filhos: Pedro Lispector Valente e Paulo Lispector Valente. Poucos meses após publicar “A Hora da Estrela”, Clarice foi hospitalizada, com um câncer de ovário detectado tardiamente e sem possibilidade de operar. A doença havia se espalhado por todo o seu organismo. O seu corpo foi sepultado no Cemitério Israelita do Caju, no Rio de Janeiro. Durante toda a sua vida, Clarice foi amiga de grandes escritores, como Fernando Sabino, Lúcio Cardoso e Rubem Braga.
Clarice Lispector era poliglota, tendo dominado mais de sete idiomas. Esse seu conhecimento linguístico lhe permitiu traduzir textos e obras de diversos autores, a maior parte deles de língua inglesa e francesa. Entre diversos romances, contos e crônicas, ela traduziu cerca de 35 livros ao longo de sua exitosa carreira literária. Contudo, Clarice não fora também apenas tradutora. Muitos de seus livros foram traduzidos para outros idiomas, tais como espanhol, inglês e francês. Ao todo, foram cerca de duzentas traduções para mais de dez idiomas, entre romances e crônicas.
OBRAS
Sendo considerada a grande escritora brasileira da segunda metade do século XX, suas obras são de um destaque estupendo, muitas vezes com as entrelinhas incompreendidas, fato no qual Clarice já destacava “não escrevo para agradar ninguém”, mas indiscutivelmente sempre grandes obras, com seu típico estilo entre prosa e poesia, escritas com a liberdade de quem não se importaria com o que iriam pensar. Ainda quando menina enviava seus textos a um jornal de Pernambuco que um a um eram rejeitados, uma criança prodígio incompreendida que concebia “sensações” aos seus textos.
Perto do coração selvagem (1943) merece ênfase tanto por ser o romance de estreia de Clarice Lispector quanto pela sua qualidade, obra que já trazia a tona seu estilo introspectivo e tão notória que recebeu o prêmio de melhor romance de estreia pela Fundação Graça Aranha no ano seguinte ao seu lançamento. O livro nos apresenta a história de Joana que expressa sua vida interior por meio de fluxos de consciência, a personagem fica órfã de mãe e pai, ela chega a diferir os anseios de menina em relação à mulher. A autora mistura objetividade e subjetividade, intercala passado e presente, com seu estilo prosaico que nos passa com fluidez a visão de mundo da protagonista, ao passo que faz convergir o imaginário com os incidentes reais de Joana. O livro ganhou ênfase no circulo literário, promovendo a autora comparações com outros escritores como Virginia Woolf e James Joyce. Clarice com seu jeito atípico, disse mais tarde que nunca havia lido os autores antes de escrever o seu primeiro romance.
Laços de família (1960) é uma coletânea com treze contos entre os quais existem verdadeiras pérolas da narrativa curta brasileira. Nos contos os personagens são surpreendidos por mudanças insólitas em seus cotidianos banalizados, desta forma suas percepções da realidade são desconstruídas a partir de revelações em diversas situações criadas que acabam levando a abordagens filosóficas a respeito da vida e devaneios da existência. Diversos temas são trazidos à tona como a morte, questões a respeito de nossa existência e introspecção como em “Devaneio e embriaguez duma rapariga”, “Amor” e “A imitação da rosa”. Como exemplo de quebra da percepção comum da realidade temos o mergulho trágico em uma festa familiar nos 89 anos da matriarca em “Feliz aniversario”. Além da abordagem a respeito da mulher com a domesticação de sua natureza selvagem em “Preciosidade” e “O búfalo”, entre outros contos que possuem a assinatura de qualidade Clarice Lispector.
A paixão segundo G. H. (1964) trata de uma mulher identificada apenas como G. H., a protagonista e narradora do romance, a obra se dispõe em capítulos que seguem uma sistemática, interessante o fato de cada capítulo começa com a mesma frase que encerrou o anterior. No enredo, depois da protagonista despedir a empregada doméstica e decidir fazer a limpeza do quarto de serviço, a banalidade é rompida quando a protagonista esmaga uma barata e coloca-a na boca, fato que provoca interpretações diferentes, ainda mais pelo fato do uso de metáforas durante todo o livro. Os fluxos de consciência também estão presentes nesse livro, onde Clarice reflete a essência do ser, a partir da saída da rotina e de um mergulho direto ao inconsciente primitivo do indivíduo, um grande monólogo que simpatiza com o existencialismo.
A hora da estrela (1977) é um adeus, último livro escrito por Clarice Lispector e lançado pouco antes de seu falecimento. O enredo conta com a própria Clarice, no entanto, como o personagem Rodrigo S. M. um escritor à espera da morte que narra a história da solitária Macabéa, alagoana, órfã e virgem. Como sua vida ia se esvaindo e ela já pressentia isso, Clarice coloca um pouco de si em ambos os personagens. A protagonista Macabéa trabalha como datilógrafa no Rio de Janeiro, passou a infância no Nordeste e passava horas ouvindo a Rádio Relógio assim como nossa diva, nada se encaixa à sua volta, é a construção e desconstrução de uma persona que cumpre com sua jornada. Ao visitar uma cartomante, a protagonista tem a revelação de toda a inutilidade de sua vida, ao passo que ganha esperanças de um futuro casada com um estrangeiro rico, quebra da banalidade ou não, o fato é que esta é uma obra instigante, algo do feitio de Lispector, com suas entrelinhas dispostas em personagens, mente que nunca se conheceu por inteiro, talvez a ponta do iceberg, algo não só comum a ela, mas que transborda a condição humana.
Muitas outras de suas obras merecem também grande destaque, “Felicidade Clandestina”, “A Via Crucis do Corpo”, “Água Viva” são alguns exemplos, cobertos pela infinitude de Clarice. Que sorte temos de poder ler seus livros.
Uma rara e extremamente instigante entrevista foi concedida por Clarice Lispector em 1977 à TV Cultura. A escritora pediu que a entrevista fosse divulgada apenas após sua morte, posteriormente a matéria foi ao ar dez meses depois com a morte de Clarice em dezembro de 1977. Particularmente acho que a entrevista tem um impacto enigmático, a figura de Clarice como centro da questão, respostas precisas, incertas, concretas, tudo no mesmo emaranhado que dá a entender um pouco sobre a dimensão da escritora. Questionamentos profundos sobre o ser ou o não ser, curiosidades a respeito dessa mulher transcendental.
Repórter: “Você poderia nos dar uma ideia do que era a produção da adolescente Clarice Lispector?”
Clarice Lispector: “Caótica. Intensa. Inteiramente fora da realidade da vida.”
Repórter: “Clarice, a partir de qual momento você efetivamente decidiu assumir a carreira de escritora?”
Clarice Lispector: “Eu nunca assumi.”
Link para a entrevista: https://youtu.be/ohHP1l2EVnU
Trailer do filme A Hora da Estrela (1985) adaptação do livro de Lispector para as telonas:
LEGADO
Clarice é lembrada como uma das maiores autoras da literatura brasileira. Sua influência transcende o universo literário, chegando a influenciar as pessoas através da sua luta e trajetória de vida.
Imigrante, judia, mulher, viveu em uma época onde a maioria das pessoas via isso como problemas, ela transformou isso em força, se formou e batalhou para que seus textos fossem publicados. Soube se impor como jornalista, uma profissão que na época existiam poucas mulheres, além de seguir com garra sua vocação literária. Pode-se dizer que Clarice foi um dos poucos nomes da literatura brasileira que conseguiram um reconhecimento ainda em vida.
Com uma escrita que trazia para o público uma dramatização jamais vista nas relações humanas, foi inovadora no modo de escrever o que inspirou diversos autores que vieram após ela. Reflexivo e problematizador, seu modo de escrever falando muitas vezes das dificuldades da vida das pessoas, criaram uma grande identificação do público com suas obras.
Por último e não menos importante, teve grande influência no movimento feminino. Apesar de ter vivido em uma época anterior ao ápice da luta feminista, sua obra traz um importante registro das condições de vida das mulheres no século 20. Apesar de não ser abertamente feminista, muitas vezes fazendo criticas a algumas características do movimento que surgia, soube registrar de forma literária os comportamentos da sociedade que se identificava como machista e patriarcal.
REFERÊNCIAS
Biografia de Clarice Lispector - eBiografia - https://www.ebiografia.com/clarice_lispector/
Decifre Clarice Lispector : vida e obra da escritora - https://guiadoestudante.abril.com.br/estudo/decifre-clarice-lispector-vida-obras/
Clarice Lispector : biografia, obras, frases e poemas - https://www.todamateria.com.br/vida-e-obra-de-clarice-lispector/
5 Livros Fundamentais para Conhecer Clarice Lispector - https://www.taglivros.com/blog/livros-fundamentais-para-conhecer-clarice-lispector/
Clarice - Fotobiografia - https://amzn.to/3opidqa
Esperamos que tenham gostado!
Para contato acesse ler.ufc@gmail.com
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