Laços de Família - Clarice Lispector
"A vastidão parecia acalmá-la, o silêncio regulava sua respiração. Ela adormecia dentro de si"
Laços de Família, publicado pela primeira vez em 1960, é um livro de contos de Clarice Lispector. São treze contos sobre o cotidiano de personagens brasileiros que tratam de forma sutil a questão existencial e principalmente a condição feminina na sociedade. Os contos narram histórias sobre o rompimento do cotidiano, desestabilização de vidas aparentemente sólidas marcadas normalmente por um desequilíbrio no cotidiano das pessoas que nos levam a uma reflexão através da transformação (ou epifania) dos personagens.
Clarice aborda a solidão e os abismos da existência através da rotina, através do relacionamento das personagens entre os cônjuges, filhos, parentes, amigos e consigo mesma e apresenta uma crítica aos laços familiares que aprisionam as personagens.
Apesar dos contos serem curtos eles não são fáceis de ler. É um livro que merece atenção, paciência, apesar de ter um vocabulário simples muitas vezes seu texto é complexo, misterioso e cheio de metáforas. Não existe uma única interpretação para os textos. A leitura é densa, de reflexão, é um ato de refletir sobre seu próprio cotidiano e fazer as interpretações cabíveis.
Esses são contos que merecem ser discutidos em todas as suas complexidades. São histórias simples, mas intrigantes. Deixo aqui a sugestão de um ótimo livro, que não é fácil, mas que é muito belo e que vale a pena ser lido, destrinchado, refletido.
Abaixo estão pequenas impressões de cada um desses treze contos. Atento que o objetivo não é resumir completamente as histórias, muitos menos deixar aqui todas minhas interpretações, o real intuito do texto é abrir espaço para discussões sobre o livro.
Devaneios e embriaguez duma rapariga
O conto é marcado pelo fluxo de consciência de uma dona de casa. Como seus filhos e seu marido estão ausentes ela se permite ficar sem fazer nada. Entediada com sua vida monótona Maria Quitéria se permite descansar, longe da sua vida de esposa, mãe e dona de casa e passa a refletir sobre si mesma e sua vida. Clarice faz uma crítica sutil aos padrões machistas da época.
Amor
Narra um dia de Ana e sua epifania. Ana, que após ver um cego mascando chiclete passa por um momento de (uma espécie) desconforto existencial que lhe atormenta pelo resto da história. A cena perturba a paz de Ana. Ao descer desorientada do bonde que estava, Ana se dirige ao Jardim Botânico que é o lugar onde ela aprecia e reflete sobre sua vida e sobre “a vida nova que descobrira”. Por fim, Ana retorna a sua vida cotidiana.
"A crueza do mundo era tranquila. O assassinato era profundo. E a morte não era o que pensávamos."
Vídeo sobre esse conto: link
Uma galinha
É a história de uma galinha que serviria de refeição, mas que tenta fugir. No meio da fuga o chefe da família agarra a galinha de volta e o leva até a casa. É nesse momento que a galinha põe um ovo e seu destino parece mudar, tornando-se o animal de estimação da família. A maternidade, o dar vida apesar de estar próxima da morte fez que a família mudasse de ideia.
A imitação da rosa
Laura ia visitar uma colega e como admirava intensamente as rosas que comprara pela manhã resolveu dá-las a anfitriã, acontece que no mesmo momento que ela embalava as rosas Laura hesita, várias vezes. Pensava na beleza das flores e se ela, imperfeita, merceia tamanha beleza ao seu lado.
Feliz Aniversário
O conto narra a festa de aniversário de uma idosa. Os laços familiares de rancor, mágoa e raiva são esquecidos durante essa celebração ao mesmo que tempo que a matriarca da família se dá conta de que seus descendentes não são aquilo que ela esperava e por isso os despreza, todos envoltos por seus lações familiares frágeis.
A menor mulher do mundo
Um pesquisador francês encontra na África a menor mulher do mundo, uma pigmeia grávida que sorria. Logo depois uma foto em tamanho real dessa mulher é divulgada em um jornal e a narração conta a percepção de 5 pessoas diferentes sobre o fato, revelando a face de diversos cariocas da época e seus preconceitos que ainda se encontram ativos na sociedade atual.
O jantar
Um homem observa atento a todos os detalhes um idoso fazendo sua refeição. Nesse ato o homem reflete sobre os seus próprios limites e sobre a condição humana.
Preciosidade
Aborda de uma maneira muito sutil o início da vida de uma mulher, a passagem da infância para a vida adulta de uma jovem. A protagonista deste conto acordava muito cedo para ir à escola, o caminho era longo e ela sentia desconforto se a observassem, por isso tentava andar sem ser percebida, mas o barulho de seus sapatos com saltos de madeira tornavam isso difícil. Até que em uma certa manhã algo acontece e muda internamente a personagem que passa a querer se impor de forma diferente.
"Há uma obscura lei que faz com que se proteja o ovo até que nasça o pinto, pássaro de fogo."
Texto interessante sobre esse conto: link
Laços de família
Em um primeiro momento do texto, mãe e filha vivem um clima de tensão em sua viagem a estação, é perceptível também que as relações de amor entre as duas se dá de uma forma diferenciada. Catarina dirige-se ao quarto para ver o filho e ali demonstra seu carinho e amor de forma bastante indireta. O texto é capaz de desenhar tensões familiares e mostrar a dinâmica dessa família que só é o que é devido as características de seus membros.
Começos de uma fortuna
Conta a história de Arthur, jovem ambicioso e que sempre nutriu um desejo de guardar dinheiro tentando sempre economizar. Quando um colega de Arthur o convence a ir com uma garota ao cinema o texto declara o sentimento que Arthur tinha de que estava sendo explorado, porém o personagem não passa de um jovem solitário que buscava o dinheiro como fuga de sua realidade.
O mistério de São Cristóvão
Em São Cristóvão, em maio, uma família desfruta de um jantar. Quando a mãe, o pai, as crianças e a avó adormecem apenas uma jovem de 19 anos permanece acordada e vê três mascarados que invadem o jardim da família em busca de jacinto. Os invasores tomam um susto e resolvem sair do jardim. Todos os membros da família recuperam a consciência e o equilíbrio da vida anterior, menos a moça.
O crime do professor de matemática
Um professor de matemática vai até a parte mais alta da cidade para enterrar o corpo de um cachorro como forma de compensar o abandono de seu cachorro de estimação. Ao longo da narração Clarice nos deixa a reflexão, qual o maior crime desse homem: abandonar o animal ou não ter coragem de ser humano? No fim o homem desenterra o cão desconhecido e considera o crime como renovado.
O búfalo
Após um amor não correspondido a personagem quer aprender a odiar, cansada de amar e perdoar. Para isso, vai até um zoológico observar alguns animais na esperança de encontrar nessas criaturas, assim como nela mesma, a solidão. Porém ela só é capaz de encontrar o amor. Por fim, ao se deparar com a figura de um búfalo ela parece encontrar um ser com o qual se identifica.
"Eu te amo, disse ela então com ódio para o homem cujo grande crime impunível era o de não querê-la. Eu te odeio, disse implorando amor ao búfalo."
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Boa leituras!
Até mais :)